Design do Mal: O Que Faz de Scar um dos Maiores Vilões da Disney
Um olhar mais atento ao design e desenvolvimento de personagem do vilão de O Rei Leão.
Não acredito que terei que começar dessa forma, mas: contém spoilers. Muitos, aliás.
Quando se trata de vilões icônicos da Disney, Scar, de O Rei Leão, certamente está quase no topo da lista. Mas o que torna Scar tão memorável, tão aterrorizante e tão bem desenvolvido? Ou eu deveria dizer mal desenvolvido? É com essa dubiedade de significados que vamos analisar o que há de melhor no que esse vilão icônico tem de pior.
Primeiro, vamos falar sobre o design físico de Scar. Com seu rosto marcado por uma enorme cicatriz, pelo escuro e olhos amarelo-esverdeado penetrantes, Scar é a quintessência da intimidação. Mas não é apenas a cicatriz que o torna tão visualmente impressionante. Quando falamos sobre design de personagens, especificamente sobre vilões, é comum que os artistas visuais utilizem de formas e proporções um pouco mais distorcidas (no caso da Disney, bastante distorcidas), alterando drasticamente elementos das estruturas padrão que reconhecemos nos animais ou nos humanos.
Com Scar não é diferente. Sua juba desgrenhada, olhar semicerrado e sua mandíbula bem avantajada não apenas o destacam dos demais leões da animação, mas também criam uma sensação de desconforto. Sua estrutura magra e ossuda e feições nítidas dão a ele uma aparência quase esquelética, aumentando seu comportamento ameaçador. Outro traço marcante apresentado no personagem é sua característica afeminada, que também é muito comum em tantos outros vilões. Ainda que eu discorde do uso equivocado desse atributo, este em específico, na minha visão, serve para contrastar ainda mais o personagem de seu antagonista, visto que Mufasa carrega consigo princípios e virtudes que são muito comuns em heróis. Este traço de sua personalidade, além de conferir ao personagem um certo ar de sofisticação e elegância — que serve como base para suas outras características como inteligência, frieza e soberba — deixa evidente que Scar é um grande estrategista que detesta botar a mão na massa e fazer o trabalho sujo.
Mas claro, o design de Scar não é apenas sobre a aparência. O desenvolvimento de seu personagem é igualmente impressionante. Desde sua introdução inicial como irmão de Mufasa, até sua eventual traição e aquisição das Terras do Reino, a descida de Scar à vilania é muito bem trabalhada e executada.
Apesar da história ser contada do ponto de vista da ‘coroa’, se olharmos com atenção, todo o plot em O Rei Leão é dirigido através dos princípios morais de Scar. Mufasa, seu irmão mais velho, é um leão forte, imponente e íntegro, fazendo com que desde sempre fosse o favorito de seu pai para liderar o reino. A partir do momento que pais escolhem o seu favorito, eles associam a este todas as características que consideram boas, e o que sobra de ruim, cai no colo do irmão. No caso de Scar, sobra a negligência, a humilhação e, principalmente, a inveja.
A animação começa mostrando o nascimento de Simba, e logo em seguida, apresenta seu título com um corte seco. Na sequência, Scar faz sua primeira aparição na história. Neste momento, ele reflete sobre o sentimento de injustiça e discute com seu irmão. Mufasa então o lembra que ele não apenas deixou de prestigiar o nascimento de seu sobrinho, mas que ignorou a chegada de seu próximo rei. Aqui é o ponto onde Scar se transforma em vilão, lançando seu primeiro lampejo de frieza: ao não admitir que terá de obedecer às ordens de seu sobrinho, Scar, cheio de ressentimentos temperados com psicopatia, planeja a morte de Simba. A primeira, no cemitério dos elefantes, falha miseravelmente pois Mufasa rapidamente se junta a Simba e Nala para defendê-los. Sabendo desse fator, Scar não só mantém seu plano inicial como o amplia para matar Mufasa. Nesse momento, somos agraciados com um dos maiores números musicais do filme: “Se Preparem” (Be Prepared, em inglês).
A canção não é apenas cativante e envolvente, mas também serve como uma vitrine horripilante da ambição e das táticas de manipulação de Scar. O uso de motivos militares e de cores como verde e vermelho (que, nesse contexto, denotam um significado de perigo) adicionam uma camada extra de desconforto à cena. Nessa passagem, apesar do personagem dizer com toda frieza que devemos nos preparar “para a morte do rei, e Simba também”, a intenção inicial de Scar é na verdade invertida, sendo Simba a primeira vítima, com a ideia de causar uma debandada de gnus para pisotear o herdeiro do trono. Ainda neste número musical, também somos apresentados à primeira das piores decisões que o estúdio tomou para evidenciar a desumanidade do personagem: a comparação a Adolf Hitler.
Sim, eu sei que você provavelmente já sabe. Esse é um tópico que vive rodando a internet de tempos em tempos, inclusive há diversos vídeos e artigos fazendo comparações, mas que é sempre importante frisar. Os próprios criadores do filme já assumiram no passado que se inspiraram em um filme de propaganda da Alemanha Nazista chamado “The Triumph of The Will”. As referências ficam cada vez mais claras quando vemos cortes como o das hienas marchando em frente ao antagonista da animação, ou a referência clara à Catedral das Luzes de Nuremberg, onde eram realizados os comícios do Partido Nazista. A intenção do estúdio era salientar o ímpeto de maldade pura do personagem. No entanto, reconhecendo o erro, o estúdio repaginou completamente o número de Scar na versão de 2019 do filme. E que eu particularmente achei uma merda.
Após a morte de Mufasa, Scar conclui o seu plano tomando para si o título de rei das Terras do Reino (parece redundante, mas é esse o nome mesmo). Anos depois, preocupado com o insucesso de seu reinado, o rei então começa a perguntar para Zazu — o tal tucano azul, agora aprisionado — o que ele está fazendo de errado para não ser tão adorado como era seu irmão mais velho. Zazu tenta buscar hipóteses e, em dado momento, cita que seu reinado não conta com uma rainha. Apesar dos diversos motivos apontados por Zazu, Scar fica deslumbrado com a ideia de ter uma ‘primeira dama’, o que nos leva a uma cena que, ainda cortada do filme original, permanece no musical da Broadway: The Madness of King Scar.
A música em questão flutua por diversos ritmos e tonalidades diferentes, o que é coerente com seu nome, afinal, o personagem de Scar é tão desprovido de atenção e afeto durante toda sua jornada que, depois de ter o que sempre quis e perceber que ainda não basta, começa a ficar literalmente louco. Na canção, Nala, sua sobrinha (mas que não é irmã de Simba, porque o acasalamento desses personagens é uma loucura do cacete) surge para lhe avisar que os animais do reino estão passando fome. O rei então, no ápice da insensatez, começa a cogitar que Nala seja sua rainha. O nível de aberração que isso atinge dentro da música é estarrecedor. Mas, claro, não daria para esperar menos. Ele é um vilão e está visivelmente louco, obviamente a receita perfeita para se tornar um grande filho de uma puta.
Depois disso, a história se desenrola, e o fim todos já sabemos: Scar apanha e morre. Simba assume o trono dando sequência à linha hereditária. Toca o tema de Ciclo da Vida. Todos choram. Mas perceba: a maioria dos acontecimentos que dizem respeito ao arco principal da história são carregados nas costas de Scar. A construção do personagem, seu background e suas decisões são elementos que regem o desenrolar da obra.
Scar sempre foi meu vilão favorito, mas eu nunca soube explicar o porquê. Na minha cabeça, eu gostava dele porque era puramente ruim, mau por ser mau. Mas conforme o tempo passou, notei que ele foi cuidadosamente projetado para ser assim, esse tipinho arrogante, psicopata, cínico, frio e soberbo. Todos esses recursos combinados fizeram dele o vilão mais bem desenhado da Disney (com ressalvas, logicamente) na minha opinião.
De sua aparência física ao desenvolvimento de seu personagem, cada aspecto de Scar foi elaborado com cuidado e precisão, o que o tornou capaz de elevar o nível da história e criar um dos vilões mais memoráveis e impactantes da companhia.
Ele é um exemplo claro de como um bom design é capaz de criar as criaturas mais terríveis do mundo da fantasia.